EFUSÃO #3: A pista precisa continuar!
Bom dia, clubber!
A frase de abertura da newsletter, uma pergunta feita em 1998 pelo crítico inglês Simon Reynolds em "Energy Flash”, livro conhecido por contar os primeiros anos da cultura rave, incorpora o tema dessa edição.
Um sentimento de estagnação tomou a cena de música eletrônica brasileira, talvez em outros lugares também, após anos pandêmicos devastadores para a cultura.
São muitos os fatores que influem na pista, das políticas públicas de incentivo à arte e música aos acordos fechados entre produtores e donos de espaços, mas o momento atual é de incerteza, claro. Não existe nenhum tipo de estímulo por parte do governo, além da inflação "comendo solta" (as pessoas que não comem).
Nesse contexto, forças opostas se colidem: o fervo segue a sua atuação natural política, de questionamento, catarse e/ou extravasação, e as festas passam a jogar em um campo mais seguro como um jeito de manter o rolê diante de uma situação difícil.
Mas a pista precisa continuar. Para além disso, ela tem que provocar o presente e vislumbrar o futuro. E que futuro é esse? Bom, eu não sei, mas podemos tentar descobrir juntos.
Pegue sua bebida favorita, aperte o play na playlist abaixo e boa leitura. Lembrete: neste sábado tem GopTun em SP. Bora?
Antes de tudo, aprecie a curadoria impecável de Róisín Murphy, enquanto disseca esta news:
Na primeira edição, eu contei um pouco sobre a minha fascinação pelo estudo musical de DJs e produtores. Entender a pesquisa de um artista é mergulhar no seu âmago mais íntimo. Para a nossa sorte, a diva irlandesa do euro disco, Róisín Murphy, ama criar playlists com os sons que ela está escutando no momento e compartilhar no Spotify.
É o caso da “Róisín Caviar” (adorei esse nome 🥰), indicada pelo meu amigo Dimas Henkes, uma compilação chic para uma animada em galera ou para apreciar sozinhe. Sou suspeito para falar sobre Murphy e a sua invejada habilidade em selecionar músicas desconhecidas e incríveis, pois fã. Inclusive, ela me inspira a entender o meu próprio jeito de fazer playlists. Acredito que você conheça, mas se não, vale ouvir a sua discografia logo após dar o play no link abaixo:
Listen on Spotify: Current Listening. Mum's modern mastercuts. Updated every two weeks.
Quais os caminhos possíveis para a cena de música eletrônica?
“Se olharmos brevemente para as páginas que fazem a introdução sobre a história da música eletrônica, é possível perceber que tais movimentos contraculturais vão muito além do que se enxerga no óbvio. O House, Techno e o Trance, por exemplo, não são só estilos musicais e seria simplista categorizá-los assim. Essas potências na verdade são respostas à crises sociais que germinaram através da criatividade de pessoas que, via de regra, foram esquecidas pelo Estado. Com raízes políticas inquestionáveis, tais movimentos percorreram o mundo levando uma mensagem intrínseca: questione-se sobre tudo o que for tradicional (e reflita sobre o quão grande é isso)”, introduz Maria Angélica Parmigiani em seu artigo “O ambiente da música eletrônica é lugar de mostrar a sua verdadeira identidade visual”.
Esse viés político vem se esvaindo aos poucos, uma vez que as festas precisam sobreviver e, principalmente, fazer grana após dois anos de pandemia avassaladores. Compreensível, porém uma escolha complicada de ser feita diante de um cenário conturbado. O que seria o contramovimento? Talvez, continuar existindo.
E na tentativa de traçar possíveis caminhos para a cena, bati um papo com Gabriel Brugnara, arquiteto e criador do projeto VERSA, um dos mais promissores rolês em SP atualmente. Breve contexto: em 2020, com o Salva Rave, Gabriel foi um dos que evidenciaram as implicações da pandemia no trampo de produtores, DJs e outras pessoas que trabalham com eventos.
“Acredito que na cena da música eletrônica em São Paulo, não esta fácil para ninguém. Festas maiores, estão se transformando em festivais ou em edições pontuais, visto que dificilmente conseguem público em uma agenda mensal de eventos. Festas menores, que antes aconteciam com mais frequência. Estão praticamente inexistentes. Ou só acontecem em casas noturnas fechadas, o que coloca na balança a viabilidade financeira VS. remuneração correta para artistas e staff. Em muitos desses espaços as festas ficam apenas com valor de bilheteria, o que dificilmente paga um evento.
Com certeza temos em abundância muitos novos artistas e iniciativas rolando. Falta conscientização do público e de marcas sobre a valorização do cenário independente da arte e música eletrônica”, conta Brugnara.
No dia 09 de julho, ocorreu a segunda edição da VERSA pós-pandemia. Ali pude perceber uma dinâmica diferente na organização do evento, além de toda artística. Senti um ar de novidade que não sentia há algum tempo. E Gabriel explica o que provocou tal sentimento:
“A VERSA sempre foi sobre agregar pessoas de diferentes contextos para poder pensar o novo. Essa troca é algo que me interessa muito, porque acredito que as melhores ideias sempre surgem de grupos.
Durante a pandemia, tivemos vários processos de interlocuções com artistas inspiradores. E em mais um edital (frustado rsrs) tentamos o VERSA Trocas, que seria um projeto de workshops online, no qual o público conheceria o trabalho de pessoas talentosas e discutiria sobre novas propostas para o cenário de música eletrônica. Esse projeto serviu de referência para o VERSA LAB, o qual nasceu de maneira independente na Casa do Povo, em São Paulo. Foram 3 meses de workshops com mais de 50 artistas engajados.
Nesses encontros, co-criamos a edição da festa que rolou no dia 09/jul/22. Foi muito interessante, pois além de termos desenvolvido ideias inovadoras no campo da performance, música, cenografia e artes visuais, também nos aproximamos mais do público. Novas amizades, parcerias e até trabalhos surgiram com o LAB e estão se reverberando em várias possibilidades com potencial.”
Continuamos o papo abaixo na editoria SAVE THE DATE.
Como Curol, a mais nova favorita das pickups, faz jus ao Afro House no Brasil
“Passei a estudar a história afro-brasileira para entender melhor o meu próprio processo de construção de identidade e trazer mais conhecimento através de mensagens com as músicas e seus respectivos conteúdos audiovisuais”, explica Curol em entrevista para o site Alataj.
Traçando um percurso coerente de ascensão ao status de talento global, passando por selos como Enormous Tunes, Nature Recordings e Sony Music Entertainment, Curol também conquistou a indicação do respeitado 1001Tracklists como uma das pessoas negras que moldarão o futuro da música eletrônica. Tá bom pra você?
Do Alataj: “Eu descobri que meu objetivo em passar uma mensagem através da música está sendo interpretado de forma orgânica, exatamente como planejado. O que mais tem me marcado é ver a galera dizendo ‘O seu som é afro, mas tem uma pegada bem brasileira, né?’. Citando fatos associados à esses feedbacks que recebo, também percebo o ganho de reconhecimento por parte dos gringos, que se interessaram nas minhas misturas e que as classificam como promissoras.
Destaque mais do que merecido para uma jovem que começou a curtir música eletrônica com um set do Fatboy Slim, aos 12 anos, colocado pelos tios clubbers na televisão da sala. Para conhecer o som de Curol, aperte o play:
“Can’t Do Without You” (2014), Caribou
A icônica “Can’t Do Without You” integra o sexto disco de estúdio do produtor canadense Dan Snaith sob o apelido Caribou, chamado “Our Love” (2014). A faixa é uma daquelas que entrou pra história e, ao tocar, agita multidões. Pra se ter uma ideia, faixas como “One More Time”, do Daft Punk, e “Latch”, do Disclosure, também possuem esse título.
Enquanto a maioria dos álbuns centrados no amor começa com o artista buscando um interesse amoroso, Caribou já abre o disco lamentando a ausência de uma pessoa. É sobre isso que “Can’t Do Without You” se trata. Os vocais modificados e a repetição também exacerbam essa sensação de perda e angústia, uma longa espera melancólica para que seu amor o entenda. Talvez, por essa razão, a música ecoe como um hino das pistas de dança e comova tanta gente. Um clássico avassalador!
Conheça o eletrizante gosto musical de Curtis Alan Jones
Curtis Alan Jones, um gênio disfarçado sob diferentes nomes e projetos, tem uma carreira notável, mas bem privada. Você provavelmente o conhece pelos nomes de Green Velvet ou Cajmere, ambos os projetos têm faixas cativas dos clubinhos de NYC e outras cidades mundo afora, como “La La Land” (Green Velvet) e “Brighter Days” (Cajmere).
Assim como muitos produtores estão subindo suas pesquisas ou os seus gostos musicais no Spotify, Curtis disponibilizou uma playlist preciosíssima, lotada de tracks raras e bombásticas, que vão do techno ao house. Vale muito apertar o play e se jogar!
O que vem a seguir para a cena de música eletrônica?
Como comentei na intro dessa news, existem vários fatores que influenciam em uma pista. Pensar o futuro dentro do governo bolsonaro e com um prefeito de São Paulo que está mais preocupado em ações rápidas que empurram os problemas para debaixo do tapete, fica realmente complicado se situar. Brugnara conta um pouco sobre as dificuldades e o que ele entende como próximo passo:
“Estamos praticamente esgotados de lugares para fazer festas em São Paulo, como fazíamos no passado. Sempre há várias barreiras: acessibilidade (transporte), custos, som, prédios por toda parte com a especulação imobiliária. Está cada vez mais complexo encontrar esses espaços .
Sinto a possibilidade da volta das festas itinerantes para lugares mais fixos, mas não necessariamente para clubes e casas noturnas como num passado recente. Um exemplo: a festa Dando* está transformando o espaço do Teatro Mars, reativando o lugar também com uma programação do Teatro da Pombagira, outra iniciativa interessante além da festa.
Desde o ano passado estamos tentando com a VERSA ter um espaço físico nosso, um local onde caiba todas as nossas ideias além do efêmero. No início das festas itinerantes, lá em 2009, muitos coletivos conseguiram criar uma nova relação das pessoas com o espaço público através dos eventos de rua itinerantes. E, agora, vejo um processo diferente: projetos locais em espaços fixos, que ativam positivamente comunidades e entornos dos bairros da cidade.”
Para ler:
Livro: Energy Flash - A Journey Through Rave Music and Dance Culture
Pandemia, física quântica, parceria com Dixon. Confira pensamentos de Davis, o pai da festa ODD.